Por Elias Maroso
Em sete dias aleatórios dos meses de junho e julho de
2017, ativei um circuito eletrônico para radiodifusão de frequências moduladas
na região central de Porto Alegre. Inserções tonais de, em média, noventa
minutos ocuparam uma brecha dos canais FM conhecidos da cidade, pela faixa de
transmissão 88.8.
Construí um transmissor com peças de fácil acesso,
encontradas em qualquer loja de eletrônica. Via testes projetivos[1], meu trabalho foi o de
unir dois esquemas específicos para gerar tons elétrico e transmiti-los. O
arranjo conferiu independência de função e conteúdo sonoro ao circuito.
Seu sinal foi ajustado de modo a atingir o perímetro
experimental de trinta metros. Quando ativado, passava por uma ou duas paredes
de concreto. Sem aparelhos de rádio pelas voltas, as ondas eram imperceptíveis.
Talvez ninguém as tenha percebido de fato.
Vejo poesia nessa insignificância. É o contrário de uma
mídia de massa. Nem mensagem comunicava. Apenas emitia tons contínuos pela
própria lógica do esquema elétrico. A ação de brechar a comunicação na massa e na mensagem não se limitou, aqui,
a quesitos técnicos ou projetivos. Mais que um estudo sobre aparelhos e
eletricidade, as inserções estão para uma conquista poética.
As transmissões pela faixa 88.8 integram práticas sem restrições de formas que encorpam
problemas de arte sucedidos em mim. Penso ações conforme
modos de inserção, exposição ou apresentação[2] que mais satisfazem quereres de imagem ou de possibilidade. Com
minha poética, vou para o olho da rua, passo por salas de exposição e sou até
capaz de provocar ondas eletromagnéticas. São vontade que me armam o desafio: posso ver
ou tornar real o que eu quero pela arte?
Em função do que me move, das sinapses mentais aos
tendões da mão, minhas formas práticas vão dos atuais àqueles que preciso
conquistar. Não tenho apego por um recurso ou linguagem artística em especial.
Aliás, nem posso dizer que hoje me detenho às coisas visíveis. Pela 88.8 fiz um primeiro corpo sem ícone. É
um impulso energético que não se mostra aos olhos e atravessa coisas conforme sua
potência.
O que faço vem de órbitas com coisas das artes e para
além delas. Toda formulação prática começa por uma coleção de materiais e
imaterialidades. Sigo por uma rotina de fuçar no que existe hoje os rastros do
que quero. Não deixa de ser um método para sujar de terra ideias que começam
sem pé nem cabeça.
O que acontece agora e está em sintonia com a 88.8?
Vêm à mente várias coisas que não consigo ver a olho nu.
Neutrinos que nos passam, circulação do
ar, eletricidade cerebral, assobio de pássaro, o texto dos dias, minha estação
de rádio mental. Se com a 88.8
não alcanço o que é da ordem do visual, retomo em meu fazer o termo plástico por
uma arte de plasticizar o pensamento e a visão. Minha cabeça se esforça para
enxergar coisas impossíveis de se ver. O cérebro sofre tensões para trilhar uma
nova eletricidade.
Insisto em desenhar formas difíceis. Decompor e recompor
modelos mentais. Não costuma ser fácil. Sempre há um ou mais problemas de visão
pelos quais me perco e contamino o que vejo. Tem vezes que consigo pôr a
vontade em alguma imagem tangível. Outras se mantêm na teimosia.
Parece um compromisso de quase-alucinação. Quase,
porque não vejo sem objeto implicado no mundo, mesmo que seja mental. Mas
também é quase, porque a visão
ziguezagueia entre a frente e o verso dos olhos. É preciso que os verbos ver e visar sejam reescritos com a arte. Um ajuste poético de termos que
pode mudar a vida prática[3]. Vejo coisas que existem e
viso coisas que ainda não existem. Retina com nervo óptico. Vice-versa,
direito+avesso: não há um primeiro e um segundo que diz respeito aos feixes de
luz sobre a retina ou às projeções escuras da carne cinzenta. É dizer que as
coisas incidem sobre mim e com elas lanço outras. Pelo furo das vistas, nem
tudo é ideação e nem tudo é fato. A visão é um jogo de entradas e de saídas.
O olho governado pelo visível já passou pela navalha de
alguns artistas-jogadores. Temos na história dos cânones da arte os lances
cirúrgicos de Marcel Duchamp, quando quis superar a mão e o reconhecível com
uma arte de deslocamentos poéticos. Partida após partida, fica cada vez mais
evidente a linha que sutura o artista e a estratégia do gesto. Disse, certa
vez, ter chegado à conclusão pessoal “de que, enquanto muitos artistas não
jogam xadrez, todos os enxadristas fazem arte” (DUCHAMP, 1973, p.131). Por movimentos
mentais, os clichês sobre o visível e sobre a autoria nas imagens da arte podem
ser reconfigurados. E, assim, notamos problemas de visão por conta de uma arte
sem a recognição do que é um objeto propriamente artístico e do que é um objeto
propriamente ordinário.
São saídas da Arte através da arte. Daquelas que minoram
o A maiúsculo. Tem imagens que
precisam de mais distância para serem vistas. Quando tomam a cabeça de um
artista, ele passa pela porta dos fundos da exposição. E, pela mesma saída, ele
volta jogando com coisas de fora. Todas elas redimensionadas em pedestais da
arte, para mais ou para menos. Sobram-nos as retinas descoladas. Todo peão muda
de grau quando pisa a extrema linha adversária em uma partida de xadrez.
Ainda que eu não recorra ao inestético duchampiano, vejo
proximidades nessa arte dos gestos pensados para além do visível. Não são de
frieza cirúrgica, mas de uma voltagem vital que empina os pelos do braço. É
certo que alguns problemas de visão persistem e vão derivando de formas
variadas em meu processo criativo. A composição do interno e do externo é meu
atual motivo de insônia, o mais frequente. Funciona por dinâmicas pulsadas e
circulatórias, assim como é ao fluxo elétrico da 88.8 que vai para fora e para dentro de um ou dois recintos. Os
sinais eletromagnéticos do transmissor passam por uma ou duas paredes, porque
oscilam diferente de tijolos e concreto.
Quando um espaço não deixa o ar de fora circular com o
ar de dentro, vem a necessidade de encontrar uma entrada que também é uma
saída. Se nenhuma está à vista, tenho de pensar entranças, saliências ou
portais de atravessamento. Respirar toda uma sorte de ares. Noto diferenças de
atmosfera. É como produzir assobios, quando se dá outro tom, outra vibração, ao
ar que nos preenche.
Por isso que me dedico a fazer coisas com e através de lugares
fechados e abertos. O externo vai para dentro e o que se entende por interior é,
na verdade, uma dobra que se vergou pelo fora[4]. Costumo passar por salas
e pela rua assim como se desliza na fita de Moebius,
de topologia sem fronteira, começo ou fim[5].
Quando caminho a lugares abertos, chego ao olho da rua. Ele
sempre me mostra que não há moldura definitiva para a imagem. São inúmeros os
sinais interferentes. Com os ruídos e contágios, mantenho o exercício de
aparições sem nome nas paredes da cidade (Figura 1). Elas combinam com outros
signos corpulentos que transbordam o cotidiano. Parece que quando a arte toma a rotina como um problema de visão, faz nos
dias aquelas pichações inadiáveis, as folgas de matéria viva. É a vagabundagem que
urge para não sufocar. Insurgentes na superfície do é privado e do que é
público. Aparece, então, os singulares nem privados e nem públicos.
Figura 1 – Quatro intervenções
sem título. Impressão digital e cola branca. Porto Alegre, ano de 2017.
A rua não é o mesmo que uma exposição artística, mesmo
que um pedaço de rua possa ser emoldurado em nome da arte. Existem formas
viciadas de declarar arte que erguem paredes discursivas diante da visão.
Forma-se um espaço fechado destinado à criação e imagem que pode ser móvel e
circunstancial. O que se expõe tende a se tornar um objeto codificado em
comparação muito diferente das combinações na rua.
O ver viciado pelo código é aquele que subjuga uma
imagem quando ela “é a mesma coisa ou concorrente de outra”. Quando endereço meu
fazer a situações expositivas, é preciso cultivar uma estória de arte que não cabe só e somente só dentro de paredes historicizadas. Minha novidade não está
a serviço de pioneirismos históricos. É preciso torcer os códigos com o jeito
de dizer. Aquele sotaque inevitável que escapa da pronúncia padrão. Há de se
jogar com atração e repulsão do olhar, mesmo em um tabuleiro de verdades persistentes.
Notamos as linhas de força de campos magnéticos mesmo sem enxerga-los.
Pensar sobre o grau de visão que enxerga transparências
me serve quando não consigo fixar imagem em um desejo de arte, como é o caso
das transmissões pela 88.8. Elas
existem, embora não as visualizo. Para onde vai a arte que mexe com o
invisível?
Na busca por emblemas de invisibilidade emitida,
encontro a arte do estadunidense Robert Barry. Ressona de forma incontestável
com tais inquietudes. Junto a companheiros de causa conceitualista e contra-establishment como Douglas Huebler,
Joseph Kosuth e Lawrence Weiner, esse artista reduziu de maneira radical os
meios de apresentação poética em função de experiências mentais da arte (BARRY
et al., 1989). Durante os anos sessenta e setenta, recorreu a radiações
químicas, gases nobres e ondas eletromagnéticas para tornar real uma arte do
pensamento quase em sua totalidade imperceptível aos sentidos. Sua tendência à
invisibilidade vai a extremos como propostas de comunicações telepáticas não
aplicáveis à língua ou à imagem. São espacializações mentais para além de
galerias com portas fechadas.
Minhas inserções de rádio cumprem um desafio
auto-proclamado de gerar impulsos que vão para além de limites físicos ou
espaciais. A 88.8 não deixa de espacializar
um canal invisível, mas se distingue do não-visto que ordena os meus/nossos
dias. Diferindo-me de Barry, o interesse não está em defrontar a arte em termos
de linguagem ou apresentação em si, mas em plasticizar inserções de conteúdo
excedente no interior de uma esquadria pré-determinada. O empenho mental não
tem única finalidade no conceito, mas quer efeitos na vida prática, ainda que a
nível íntimo.
Aprendi a fazer um transmissor FM de espectro mínimo
para desutopizar (tornar real) um desejo persistente de torcer os limites
físicos de recintos fechados. Estabelece conexões de minha prática em lugares
abertos e fechados. Se antes as palavras potência, fluxo, circulação e funcionamento
frequentavam mapas mentais em meus trabalhos de arte enquanto figuras alusivas,
no esquema eletrônico da 88.8 elas
são literalidades operacionais.
O diagrama elétrico
é uma coisa abstrata. A própria apresentação de seu desenho, com ou sem
execução material, é um acontecimento de realidade, pois sem a própria autológica do circuito, a coisa não existirá nem na linguagem e muito menos materialmente. Faço desse empenho um exercício de arte
na qualidade de uma dinâmica transformativa, ainda que em escala ínfima e
individual. A arte que me anima não é aquela que só vai aos problemas de seu
campo, mas também aquela que endereça efeitos sobre os dias comuns. Sobre a ordem e a rotina
dos viventes. Sou um deles e por aqui falei de um pouco das dobras de minha vida. Espero que de algo valha para além de mim mesmo. Foi pelo circuito que pude estar de forma literal em mais de um lugar ao
mesmo tempo. Moldei-me pelo impensável e fiz pelas ondas invisíveis outra realidade concreta.
Referências
Bibliográficas
BARRY, Robert et al. Cuatro entrevistas (con Barry, Huebler,
Kosuth, Weiner). In: GINTZ, Claude. Arte Conceptual: una perspectiva.
Madrid: Fundación La Caixa, 1989.
BRAGA, Newton. Transmissores. Eléctron Especial: Rio
de Janeiro, v. 1, 1987. Disponível em:
<http://www.newtoncbraga.com.br/index.php/livros-nacionais/2393-transmissores--entenda-e-monte-vol-1-download.html>.
Acesso: 10 de jun. 2017.
DELEUZE,
Gilles. Foucault. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
DUCHAMP, Marcel. Speech to the New York State Chess
Association. In: D'HARNONCOURT, Anne; McSHINE (Org.) Marcel Duchamp. New
York: Museum of Modern Art, 1973.
FERVENZA,
Hélio. Formas da Apresentação: da
exposição à autoapresentação como arte. In: Revista Palíndromo 2, Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais - UDESC. V.1, n. 2, agosto/setembro 2009.
FOUCAULT,
Michel. A Hermenêutica do Sujeito. 3
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
KOGAWA, Tetsuo. How to build the simplest FM transmitter?
2007. Disponível em
<https://anarchy.translocal.jp/radio/micro/howtosimplestTX.html>. Acesso:
22 de jul. 2017.
MARTINS, Bosco. Manoel de Barros: três momentos com um
gênio. Entrevista à Carta Capital, 2006.
Disponível em:
<https://www.carosamigos.com.br/index.php/grandes-entrevistas/2675-manoel-de-barros
>. Acesso em 20 jun. 2017.
MATTAR,
Denise. Lygia Pape. Rio de Janeiro:
Relume Dumará; Prefeitura, 2003.
ROCHA, Helder. Introdução à Eletrônica para Artistas.
2017. Disponível em:
<http://www.argonavis.com.br/cursos/eletronica/IntroducaoEletronicaArtistas.pdf>.
Acesso: 10 de ago. 2017.
[1]Das instruções e livros de
eletrônica consultados, destaco o projeto para transmissores simples do
radioativista japonês Tetsuo Kogawa (2007) e a coletânea do educador e
engenheiro eletricista brasileiro Newton Braga para a revista científica Elétron (BRAGA, 1987). Outra boa
referência técnica para o entendimento de diagramas e montagens de circuitos
com finalidades artísticas é o e-book
Introdução à Eletrônica para Artistas de Helder da Rocha (2017).
[2] Vale pontuar que o termo “apresentação”
é pensado a partirdo desdobramento conceitual de Hélio Fervenza (2009), no que toca
as distintas formas de realização artística. Quando uma poética não se
comportam apenas em situações expositivas da arte, a apresentação serve como
“uma noção mais ampla que a exposição, e pode, dessa forma, englobá-la”
(FERVENZA, 2009, p. 79). A apresentação dá conta de experiências não restritas
a um recinto determinado ou disciplinarizado, além das chave de acesso para o
pensameto de uma arte da vida própria na forma de auto-apresentações
perceptíveis ou não.
[3]O poeta Manoel de Barros já
reescreveu a palavra visão: “aprendi que
o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras,
de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter
visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza
as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las
nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão
nos socorre desse mesmal” (BARROS apud MARTINS, 2006).
[4]Ressonância à dobra de Gilles
Deleuze, que é um dentro feito com o fora. O dentro e o fora são formações
coextensivas – “o fora não é um limite
fixo, mas uma matéria movediça, animada por movimentos peristálticos, dobras e
dobramentos, que constituem um dentro: não uma coisa diferente do fora, mas
exactamente o dentro do fora” (DELEUZE, 2005, p. 130). Baseia-se no estudo
sobre a formação do sujeito em sociedade, além do cuidado e governo de si em
Michel Foucault (FOUCAULT, 2010).
[5]“Quando você tem uma fita, inicialmente há sempre um
lado de dentro e um lado de fora; mas se você torcer uma destas pontas, tornar a ligá-la e então passar a
percorrê-la com o dedo, você não vai ter mais espaço o dentro e o fora. Você
vai ter um plano contínuo, o conceito passando de um espaço interno para um
espaço externo num movimento deslizante [...] Introduz a ideia de arte e vida
se misturando, abolindo ou negando o espaço sacralizado da sala de exposição” (PAPE apud
MATTAR, 2003, p. 32).